DENGO TANGO JAMBO

Por Igor Oliveira Prado

Jogamos as peças, partes de um todo desconhecido, ao pé da galeria e saímos para tomar um café. A intenção era realizar uma montagem percurssiva, que ilustrasse o desenvolvimento de Marostica, artista do sul do hemisfério sul, em seus processos mistos de prática e teoria na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Transbordamentos das pinturas, jogos de aparência, materialidades turvas, cremosas e entorpecidas, sempre foram zonas de interesses. Mas mesmo que tais coordenadas sejam tão familiares, como ser próximo do que viria?

O que veio, veio rápido. Proliferou-se através de tentáculos de metal amassado. Capilaridades de plásticos baratos agitados entregavam a sensação de um flambar invisível. A chama que não se via, movimentava braços coloridos e nos seduzia a um tóxico desvio do que deveria ser, apenas uma exposição. Só ao fecharmos os olhos por alguns segundos conseguíamos nos render ao magnetismo e à eletricidade de uma criatura bizarra que se alimentava de luz. Mas será que era vida?

'Micélio'. A criatura nos dizia sem uma só palavra. Em simples definição: telepatia. Na exasperada tentativa de entender o que vivíamos: invasões psiônicas, propagações de insondáveis frequências.

Uma artista é antes de tudo, uma mock up de qualquer outra coisa: mágica, ilusionista, feiticeira. Druída, mecânica ou profeta. Neste caso, uma cientista, que na premissa da era do Antropoceno, conseguira finalmente: transformar o inorgânico em orgânico; o estéril em fértil; rastejar do nada à vida. A sopa primordial mudou sua própria consistência, esgueirou-se à parede e com objetivos não previstos, domou a autora e o curador. Vidro era casca de ovo. Látex era pele. O cobre, em mergulhos e perfurações, era o mais próximo de um esqueleto. Cola era baba. Papel era cêra e o seu descascar, um expelir-indício de um metabolismo acelerado.

A criatura nos ofereceu um acordo em duas etapas. Primeiramente, que a deixássemos habitar "A Cozinha" no mais tardar por uma semana. Sua aderência seria restrita ao espaço, não aos visitantes. Por mais que se incorporasse ao lugar, pouparia todas as vidas complexas que por lá passassem. O fungo ou aracnídeo, não se sabe se viscoso ou macio, revelaria portanto, a troca final: invadiria a mente de todos, desde que o ajudássemos a se propagar pela cidade do Porto. Assim foi.

Um dengo, pelo que é familiar. Um tango, pelo que é fértil. Um jambo, pelo que se reproduz. Disse por fim, que não nos preocupássemos: qualquer ponta solta de sentido era uma oportunidade para uma invasão. Todo o resto do trabalho seria feito pela coisa, que ao fim de um pensar, já se esparramava por todo o local.

Algo turvo, cremoso e entorpecido

por Taís Cardoso

Em Algo turvo, cremoso e entorpecido, Carolina Marostica ocupa as duas salas do Museu do Trabalho com instalações compostas por esculturas desenvolvidas em materiais sintéticos que remetem a organismos vivos. O título da exposição é uma menção ao texto[1] no qual Roland Barthes, na década de 1950, reflete sobre a estética do plástico e sua essência alterada, que era uma novidade fascinante e perturbadora naquele momento. “O plástico é a própria ideia da transformação infinita” e surge atrelado a uma visão de mundo que também é responsável por moldar. Um mundo pós-guerra que a partir do desenvolvimento desse material poderia então simular, rumo ao aprimoramento e a perfeição. Em uma sociedade em que a relação com o corpo se dá muito mais pela imagem do que pelo próprio corpo, a intensificação da presença do plástico na vida cotidiana faz crescer a habilidade humana de sintetizar aquilo que deseja, somada à sensação de uma realidade física mais aberta e maleável. Atualmente, até mesmo a própria vida pode ser plastificada e intervenções cirúrgicas com objetivos estéticos se transformaram em técnicas de consumo de massa.

Ao mesmo tempo, dada a sua dificuldade de decomposição, boa parte do plástico produzido na época que Barthes escreveu seu texto ainda segue entre nós. O plástico se desmancha, deixa facilmente de ser o que é, mas suas micropartículas seguem flutuando no Arroio Dilúvio na Avenida Ipiranga, ou se arrastam em algum aterro tentando, sem sucesso, se decompor. Slavoj Zizek defende que a ecologia é o ponto crucial da ideologia nos dias de hoje [2] . Mas no seu entendimento, conforme salientado pela teórica da arte Amanda Boetzkes, a ecologia não deve tratar do resgate de um sistema orgânico que foi dilacerado pela espécie humana, e sim de olhar o mundo como ele existe, aceitando seus defeitos e falhas [3] . Nesse sentido, para Zizek, a verdadeira ecologia ama o lixo, é para ele que ela olha, não para a natureza.

A grande maioria dos sacos plásticos utilizados para integrar a “caverna” composta por Carolina Marostica na primeira sala da exposição vem da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalhada – ASCAT. Entre as coisas que as catadoras da ASCAT nos ensinaram está o fato de que, diferente dos metais, dos papelões, dos vidros e mesmo das garrafas pet, o material que compõe os sacos plásticos não é reciclável. (Elas sequer sabiam quanto nos cobrar, porque depois de usados uma ou duas vezes, as sacolinhas não têm valor nenhum). Se não são compactadas e incineradas, retornam eternamente para o lixo, como um pensamento ruim em uma noite de insônia. Seu aspecto volátil faz com que tendam a escapar e carregar por aí o seu destino de alma penada – um objeto criado para ter uma vida útil breve, mas que segue assombrando eternamente.

O processo de composição dessa obra, assim, começa na coleta de sacolas e escoa num rearranjo minucioso que as reúne manualmente, uma a uma, no ato de elaboração que atravessa o estatuto de resíduo desse material para reconfigurá-lo numa dimensão sensível. A claustrofobia enquanto efeito da onipresença das sacolas plásticas em nossas vidas, e a impossibilidade de eliminar tanto a elas quanto seus efeitos danosos ao meio ambiente, se sobrepõe à claustrofobia provocada pela própria "caverna", especialmente considerando o atual mundo pós-pandêmico. Ao mesmo tempo, nessa configuração espacial, Marostica provoca uma espécie de mergulho involuntário, como se estivéssemos debaixo da água de olhos abertos nos deleitando com a passagem de luz que atravessa uma camada transparente e radiante, enquanto detectamos a presença humana através de imensa quantidade de gestos que reúne essa névoa impermeável.

Ao utilizar outros polímeros sintéticos também derivados do petróleo, tais como espuma e náilon, de modo artesanal e não mecânico e seriado, Marostica segue no fluxo desse movimento de transformação infinita, com formas que lembram desde vísceras a criaturas marinhas. Ao se apropriar da plasticidade e da potencial maleabilidade desses materiais, ela nos propõe estabelecer uma conexão que parte de formas tão familiares quanto desconhecidas e que, se por um lado geram um desconforto que contorce o estômago, por outro celebram a invasão da vida natural pelos elementos sintéticos, sugerindo que nossos corpos jamais terminaram na pele.

As sensuais meias calças, que nasceram para alisar e uniformizar as nossas pernas, surgem no espaço num emaranhado despedaçado ou dando contorno a uma massa espumosa e disforme. Fios de náilon fluorescentes comumente utilizados para fazer perucas ou rabos de pôneis de brinquedo aparecem pendurados feito estalactites, como se as emulassem num processo de mutação, em direção a um status menos ordinário. Através dessa deformação do uso de elementos presentes no cotidiano doméstico, Marostica, desliza na nossa eterna busca pelo brilho, ao mesmo tempo que sugere uma espécie de derretimento dos corpos junto ao desejo humano de superação física e mental. Como se, ao se desmancharem, magneticamente levassem junto não só a sua matéria orgânica, mas nossos pensamentos e memórias grudadas no formato dos resíduos que espalhamos pelo mundo em direção a uma realidade menos estática.

Marostica se opõe a uma tradição rígida e monumental da escultura e sugere que reflitamos sobre o potencial extraordinário desses materiais, movimentando em seu uso uma energia erótica que eleva e fortalece as nossas experiências. Suas formas, livres de contenção, provocam a nossa imaginação que não separa o vivo do morto. Suas esculturas nunca parecem estar inteiras e finalizadas, mas sempre aos pedaços e espalhadas pelo espaço, unidas por uma rede que poderia ter pescado em sua trama seres metamorfoseados num oceano impuro e distópico.

Talvez aqui se trate não mais de querer inventar uma forma, mas justamente falar da deformação de um mundo onde já não podemos mais nos encontrar em outro lugar que não seja o da contaminação.

[1] Roland Barthes, “O plástico”, in Mitologias, trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2006, p.174
[2] Slavoj Zizek in Astra Taylor (dir), Examined Life (Toronto: Sphinx Productions, 2008.) https://www.youtube.com/watch?v=8rEgcLMamZE&t=3463s

[3] BOETZKES, Amanda. Plastic Capitalism: Contemporary Art and The Drive to Waste. Cambridge: Mit Press, 2019.

Todos os corpos giram ao seu redor

a partir de "Voltaremos outros sob o mesmo sol", de Carolina Marostica

                                                                                          Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés.                                                                          Samuel Beckett, "Esperando Godot"

por Ulisses Carrilho 

Células tronco são células sem especificidade o bastante para transformarem-se em quaisquer tipos de células, presentes nos órgãos mais importantes dos mamíferos, com capacidade de autorenovar-se para produzir mais células de si mesmas. Shinya Yamanaka, cientista japonês, criou células tronco embrionárias pluripotentes a partir de células multipotentes, efetivamente apagando as diferenças entre células adultas e embrionárias, o que lhe valeu o prêmio Nobel em 2006. Muito embora não inaugure um campo estrito de investigação na medicina, o uso destas células para tratar de órgãos e tecidos injuriados que precisam de renovação, ilumina uma série de hipóteses, a partir da possibilidade de duplicar-se, repetir-se, substituindo métodos mais invasivos como enxertos ou transplantes. Esta capacidade das células tronco embrionárias em repetir-se diferentemente é chamada pelos cientistas, não à toa, de plasticidade.

Com os caninos afiados, a filósofa francesa Catherine Malabou rumina tais verdades biológicas para pensar a plasticidade à luz do conceito de repetição na abordagem de Jacques Derrida. A autora comenta a conferência "The Ends of Man" [Os Fins do Homem] proferido em Nova York, em 1968, por ocasião do seminário Filosofia e Antropologia. Nele o autor insiste nas dificuldades de abrirmos um espaço que separe as inúmeras diferenças que escondem o termo "humano"– nacionais, éticas, culturais ou gêneros – a uma possível universalidade, à partir da sua perspectiva mais aberta. Devemos ler o "fim" do homem como um duplo dúbio e vacilante: ao passo que atestam a desaparição do humano afirmam também que assumimos um momento de plenitude. O humano acessaria este estágio ao evocar sua desaparição. Eis então a natureza apocalíptica do humano: sua destruição é sua verdade, na sua morte e na sua completude, dissolução e êxito que ainda estão por vir. A iminência do colapso quando não amedronta, é rebatida pela calamidade já instaurada – não há plano ou estratégia a ser desfiada, senão uma crise que se impõe. Alvorece uma última expectativa: todos os outros corpos, como planetas, planetas anões, asteroides, cometas e poeira, bem como todos os satélites associados a estes corpos, giram ao seu redor. O sol. O mesmo sol.

Embrenhada nos escritos que compõem o imaginário da artista, dormia à espreita a frase que intitula esta mostra. Em "Voltaremos outros sob o mesmo sol" encontramos no verbo voltar um eco de tal ideia de repetição, usada por Malabou e seus convivas, para discorrer a possibilidade de um superhumano, de um pós-humano ou de uma transhumanidade. A frase, como a mostra, carrega em suas cores as tintas de uma era embrenhada na investigação de um ecossistema futuro ou passado, de um porvir corporificado ou um passado liquefeito, das cores aberrantes que pulsam vidas que subvertem os contornos conhecidos e terrenos em vez de representar os desastres e as catástrofes. Mas também sentimo-nos encharcados, pares daqueles que estão submersos, próximos àquilo que é invisível – ou daquilo que os olhos não alcançam, que está para além da linguagem. Imaginar o futuro convoca o passado – hoje é sempre ontem – e cada espaço é sempre um acúmulo desigual dos tempos.

Os materiais não se organizam, mas parecem ser afetados pelo processo de mutação e alojamento, como pequenas colônias que se multiplicam por frestas ou corpos que pendem do teto como estalactites. Os processos escultóricos presentes na mostra ressoam como a recorrência de tentativas de domesticação do corpo, numa alusão a processos evolutivos, deformações e mutações, com acabamentos viscosos e reflexivos. Superfícies que revelam brilhos denotam mais uma faceta da corporalidade da pintura, tão disfarçada ao longo da história da arte. 

Do conflito entre o que o conhecimento científico nos mostra e o que construímos como nossa identidade ocidental, separando natural e artificial, surge uma simbiose e interdependência entre natureza e cultura, sugerida pela dinâmica material empregada pela artista a partir do uso de materiais sintéticos em processos escultóricos. São eles, os materiais, que indagam o que nos diferencia e o que nos aproxima desses corpos artificiais. A discussão das cores, que na trajetória de Carolina Marostica origina-se no campo da pintura, revela um uso singular do espaço, a partir de excessos exorbitantes e que aludem a transbordamentos e sedimentação. 

Numa mirada atenta pelos escritos de Carolina Marostica, a palavra corpo passa a surgir incessantemente. A constatação dessa regularidade – uma repetição – dá a pensar: verificando, num primeiro passo, a presença de dois corpos que se inter-relacionam: "o corpo da obra e o meu corpo". Devido à interdependência destes, é leviano abordá-los separadamente. No entanto, há um terceiro corpo, que por ora nos interessa: aquele que surge quando a obra é exposta. Para Marostica, este corpo-espectador é considerado já na construção das obras, que não oferecem-se à simples apreciação. Nas palavras da artista, falar em corpo é falar do mundo material –em oposição ao imaterial–, do sensível –em oposição ao inteligível–, de instintivo –em oposição ao racional–, do natural –em oposição ao civilizado–, do efêmero –em oposição ao eterno.

Para Malabou, residiria no poder plástico a capacidade de desenvolvermo-nos fora de nossos próprios padrões, de transformar e incorporar ao um aquilo que é passado ou estrangeiro, curar feridas, substituir o que foi perdido, recriar moldes quebrados. Mas nós realmente desejamos que este outro humano venha? A filósofa desponta que frente à cultura das novidades e inovações, a abertura desta questão é tremulante e oferece a possibilidade de esculpirmos um humano que vem, aquele que criará novas genealogias, desprovido da culpa original, pronto para jogar de novo – repetir, mas repetir diferente.

 


Mutável Matéria

por Talitha Motter [1]

Merleau-Ponty, certa vez, afirmou que “é oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura”[1]. E é justamente por meio de seu corpo que Carolina Marostica vivencia o entorno e o refaz em trabalhos, através de substâncias recolhidas no seu transitar cotidiano. Ao invés de trazer uma representação do visível para a pintura, desenvolve suas obras como matéria formante do mundo. Nas telas e instalações (que também fulguram como pintura), esses materiais, como a tinta a óleo, o silicone ou a pelúcia, que partilham a característica de serem informes, maleáveis e de fácil resposta ao gesto da artista, geram movimentos de expansão, de trocas e de acomodação. Eles trazem à tona as forças que interagem na natureza para moldarem nossos corpos. Tais estruturas aludem à instabilidade, à transitoriedade que se esconde sob a visão superficial da pele que reveste os seres.

Nesse percurso expositivo, somos deslocados para uma situação de maravilhamento e descoberta. Distanciando-nos do embotamento da sensibilidade, observando as gradações de espessuras dos materiais, a maneira como há regiões que se adensam para após se diluírem, notamos a carne que se contorce. Das experiências primeiras, da percepção inicial das coisas, quando ainda não se estabeleceram filtros do que é adequado ou não, surge essa matéria que se apresenta plena de luz. Rasgam-se, em nossos olhos, verdes e rosas fluorescentes. E ali essas cores brincam, numa mistura que não tem receio do poder das cores. Como afirma a artista, nessa esfera do que é primeiro, “os contrários se diluem”[2]. Colocar-se na situação de desequilíbrio, deixar a matéria agir, os elementos deslocarem-se, numa relação mais livre com o corpo-matéria, faz parte do processo de Marostica.

 

[1] É mestre na linha de História e Crítica de Arte pelo PPGAV/UFRJ, coeditora da revista Arte ConTexto e curadora da plataforma Aura.

[2] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p.16.

[3] MAROSTICA, Carolina. Entrevista. Porto Alegre, 21 jul. 2015. Entrevista concedida à autora.